Intersecções entre a arquitectura e o cinema. Portugal, 1959-1974.





O período entre 1960 e 1974 em Portugal foi marcado, não só por relevantes acontecimentos históricos, como a guerra colonial, a emigração massiva, agitações políticas e um vasto processo de urbanização, mas também pela emergência de movimentos no cinema e na arquitectura que mudaram a paisagem cultural dos últimos cinquenta anos. Os Verdes Anos de Paulo Rocha estreou em 1963 marcando o início do Cinema Novo e o aparecimento de um novo tipo de espaço no cinema português, recentrando-o na paisagem urbana e abandonando a visão predominantemente ruralista do ambiente cultural de meados do séc. XX. Belarmino (Fernando Lopes, 1964) e O Pão (Manoel de Oliveira, 1964) confirmarão esta tendência. Ao mesmo tempo, uma inovadora abordagem da arquitectura estava a ser levada a cabo por uma nova geração de arquitectos. No Norte, Távora e Siza, sob influência do Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa e através de obras como a Quinta da Conceição, a Casa de Chá e a Piscina de Leça da Palmeira, tiveram um papel central na crítica ao movimento moderno, acompanhando, ou mesmo antecipando, o que se discutia internacionalmente. No Sul, Teotónio Pereira e Portas, com a Igreja do Sagrado Coração de Jesus e Pessoa, Cid e Athouguia, com a sede da Fundação Calouste Gulbenkian, não deixando de estabelecer uma continuidade, procuraram uma revisão dos mitos da "tradição moderna", experimentando uma nova e mais complexa relação com o espaço urbano - o primeiro edifício integrando a rua no seu desenho, o segundo prolongando o espaço interior para os jardins. Estes edifícios, exemplos da arquitectura que se estudará, são encenados de uma forma inovadoramente cinemática, onde o enquadramento e o movimento são elementos chave de projecto.

O Projecto Ruptura Silenciosa, que decorreu na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto entre 2010 e 2013, estudou a proximidade entre os movimentos de renovação no cinema e na arquitectura que corporizaram uma nova visão do espaço e da cidade, marcados pelos acontecimentos sociais, culturais e políticos da década de 60 e inícios de 70, em Portugal mas também internacionalmente (Pop Art, Pós-modernismo, Nouvelle Vague, Neo- realismo, etc). A investigação foi feita sobre os objectos arquitectónicos e cinematográficos que estabeleceram uma ruptura silenciosa, dando um sinal das convulsões na sociedade portuguesa que levaram à revolução social e política de 1974 que fez capitular a ditadura. Cineastas e arquitectos circulavam nos mesmos meios e discutiam como as duas disciplinas se podiam influenciar mutuamente, não apenas culturalmente, mas como processos de projecto que lidam com o uso do espaço. Provavelmente como nenhum outro método de visualização, as imagens em movimento conseguem representar os espaços arquitectónicos como espaços "vividos" e "habitados". O cinema é muitas vezes encarado como um meio que, através da relação espaço/tempo, da mise-en-scène, dos personagens e do argumento, pode circunscrever importantes debates sobre a arquitectura e a vida urbana. Foi defendido que as imagens em movimento têm a capacidade de criar um "sentido de lugar", fenómeno não só relacionado com a matriz da realidade física do espaço que é filmado, mas também com a relação vivencial que estabelecemos com a luz, a cor, o som, a música e a estrutura narrativa.

Apesar de ser objecto de investigação há já algum tempo, essa investigação estava, no entanto, dispersa e foi necessário aglutinar práticas e trocar experiências sobre as diferentes formas de abordar o tema, num fórum de discussão multidisciplinar sobre a metodologia a adoptar no estudo de duas formas de arte próximas, mas distintas. A conexão entre a arquitectura e o cinema revelou-se, assim, um campo rico para a pesquisa académica. O Projecto Ruptura Silenciosa procurou sistematizar as afinidades em torno da arquitectura e do cinema, de forma a construir uma base de trabalho comum para a colaboração entre os diferentes parceiros envolvidos. Compreendeu uma componente de investigação teórica, baseada na escrita de artigos e dissertações de mestrado e doutoramento, bem como na organização de conferências, simpósios e seminários de âmbito internacional, que contribuíram de forma significativa para a formação pós-graduada e especializações na área dos estudos críticos sobre arquitectura e cinema; compreendeu também uma componente de investigação prática ou experimental, procurando reflexões inovadoras sob a forma de objectos multimédia (documentários, curtas- metragens, base de dados de texto, vídeo, imagem e som).

Ruptura Silenciosa, projecto com a duração de três anos, foi um fórum para investigadores que exploraram a relação entre a história do espaço urbano, da arquitectura e das imagens em movimento em Portugal. O Projecto propôs aos participantes a oportunidade de partilhar reflexões a partir de um discurso fílmico sobre a arquitectura assim como uma leitura espacial do cinema, cruzando as fronteiras das duas disciplinas.

Do ponto de vista documental, foi compilada e digitalizada produção relevante, mas dispersa, sobre as intersecções entre o cinema e a arquitectura no contexto português; foram entrevistados sistematicamente os intervenientes com um papel decisivo no período em estudo (arquitectos, cineastas, críticos, historiadores, académicos), entrevistas que foram publicadas em texto, áudio e vídeo; foi digitalizada e catalogada iconografia relevante respeitante à presença da arquitectura e da cidade no cinema português, assim como iconografia da arquitectura portuguesa da época em estudo, que de alguma forma se enquadrava de um ponto de vista cinemático (projectos, fotografia, desenhos, maquetas), usando como fonte principal, sempre que possível, os arquivos pessoais dos próprios autores; foi iniciada uma série de edições sobre a relação entre a arquitectura e o cinema em Portugal. Foram publicados um significativo número de artigos e ensaios produzidos no âmbito deste projecto, em Portugal e no estrangeiro, estimulando o interesse e os estudos académicos sobre a historiografia do cinema e da arquitectura portugueses.



Silent Rupture. Intersections between architecture and film. Portugal, 1960-1974.


The period between 1960 and 1974 in Portugal was marked not only by relevant historical events, such as colonial wars, massive emigration, political upheaval and a vast urbanization process, but also with the emergence of movements in film and architecture that changed the cultural landscape over the last fifty years. Os Verdes Anos by Paulo Rocha premiered in 1963 marking the beginning of the Cinema Novo movement and the upsurge of a new type of space in Portuguese cinema, re-centring film in the urban landscape and abandoning a rural vision predominant in mid-twentieth century Portugal’s cultural environment. Belarmino (Fernando Lopes, 1964), or O Pão (Manoel de Oliveira, 1964) will confirm this new trend. At the same time a new approach to architecture was under way by a young generation of architects. In the north, Távora and Siza, under the influence of the Inquiry on Portuguese Popular Architecture and through buildings like Leça da Palmeira's Quinta da Conceição, Tea House and Swimming Pool had a central role in questioning the legacy of the modern movement, following, or even anticipating, what was being discussed internationally. In the south, Teotónio Pereira and Portas with the Sagrado Coração de Jesus Church and Pessoa, Cid and Athouguia with the Calouste Gulbenkian Foundation, aimed to establish a new and more complex connection with the outside urban space - the former building bringing the street inside, the later extending the interior space to the gardens, achieving a continuity with modernist architecture and at the same time the revision of the myths of "modern tradition". These buildings, examples of the architecture that will be studied, are staged in a new and remarkable cinematic way in which framing and movement are key elements of design.
The Project Silent Rupture will study the proximity of the renewal movements in film and architecture that embodied a new vision of space and the city, marked by the social, cultural and political events of the 1960’s and early 1970’s in Portugal as well as internationally (Pop Art, Post-modernism, Nouvelle Vague, Neo-realism, etc). Research will be undertaken on how cinematographic and architectonic objects were a sign that times were changing in Portuguese society, the silent rupture that ultimately lead to the social and political revolution of 1974 that brought down the dictatorship.
By then, filmmakers and architects shared the same background and discussed the influence of each discipline on the other, not only culturally but also as design processes that deal with the use of space. Perhaps as no other visualisation method, ‘moving images’ can represent architectural spaces as ‘lived’ and ‘inhabited’ spaces. Through the use of space, time, mise-en- scène, characters and plot film can be seen as a medium that encapsulate important debates on architecture and urban life. Moving images also have the capacity of generating ‘a sense of place’, a phenomenon that is not only connected to the shape and form of the physical reality of the space filmed, but also to our ‘experienced’ connection to the use of light, colour, sound, music and narrative structure. Cinema and architecture association has been the subject of scholarly investigations for some time, but research is disperse and the need is felt to agglutinate practices and exchange experiences on the different ways to approach this theme, in a multidisciplinary forum of discussion on the methodology of the study between two different, yet related, art forms. This makes the topic still a rich field for academic exploration. The Project Silent Rupture will try to systematize affinities between architecture and cinema in order to build a common foundation for cooperative work among different partners. It will comprehend a theoretical research component, based on papers and dissertations as well as on the organization of international scope conferences, symposia and seminars sponsored by the project, hoping to significantly contribute to post graduate education and specialization in the area of critical studies on architecture and film; it will also have a practical or experimental research component, seeking for innovative reflexions on the form of multimedia (documentaries, short-films and a database of video, image and sound).
Silent Rupture, a three-year project, will offer a forum for established and upcoming scholars to explore the relationship between the history of urban space, architecture and the moving images in Portugal. Drawing on a range of disciplinary approaches this Project aims to propose scholars the opportunity to share insight into a filmic discourse on architectural design as well as a spatial reading of film, crossing the boundaries of both disciplines.